O “novo” prédio do Real Gabinete Português de Leitura

Perdoem-me os meus parcos leitores, mas só agora dou-me conta de uma falha imperdoável nessa minha pobre e combalida coleção de postagens: a ausência de um texto sobre a fachada do Real Gabinete Português de Leitura!

Pois bem, corrijo-me hoje, e peço desculpas pela distração. O edifício “novo”[1] do Gabinete Português de Leitura, associação que posteriormente recebeu a alcunha “real”, é uma joia arquitetônica da cidade.

Na falta de um Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa, ou de um Convento de Cristo, em Tomar, o Rio de Janeiro também tem o seu monumento manuelino – neomanuelino, melhor dizendo… Fica ali no número 30 da Rua Luís de Camões, no Centro.

Mas há males que vêm para bem. Recentemente descobri um texto, publicado no Diário Ilustrado no dia da inauguração do novo prédio – 10 de setembro de 1887 – e assinado pelo grande Araújo Vianna[2], em que ele descreve magistralmente o prédio e traz luz quanto à autoria dos seus elementos internos de decoração – alguns deles por mim desconhecidos.

Sendo assim, pretendo de vez em quando “invocar” o grande historiador durante essas mal traçadas linhas, de modo a entregar ao leitor um texto mais completo.

Vamos lá, então. Comecemos do começo, comme il faut, pois há muito o que mostrar.

Breve Histórico

O Gabinete Português de Leitura – ainda sem a distinção da palavra Real, somente concedida em 1906 pelo rei português Carlos I – foi fundado no Rio de Janeiro no dia 14 de maio de 1837 por 43 imigrantes portugueses.

Aberta ao público desde 1900, a biblioteca do Real Gabinete possui a maior coleção de obras portuguesas fora de Portugal.

A lei do depósito legal portuguesa estabelece que pelo menos um exemplar de cada publicação editada naquele país deve ser enviado ao RGPL. Hoje a biblioteca, que é a maior instituição de estudos portugueses fora de Portugal, já conta mais de 350.000 volumes.

Neste prédio foram realizadas as cinco primeiras sessões solenes da Academia Brasileira de Letras, sob a presidência de Machado de Assis.

O prédio atual – tratado aqui como “novo” – é projeto do arquiteto português Rafael da Silva e Castro e foi erguido entre 1880 e 1887, tendo sido a pedra fundamental assentada pelo Imperador Dom Pedro II no dia 10 de junho de 1880, data do tricentenário da morte do autor dos Lusíadas, Luís de Camões. A obra foi conduzida localmente pelo arquiteto Frederico José Branco, também ele de origem portuguesa.

É a primeira construção de estrutura metálica da cidade, segundo o INEPAC.[3]

Os artistas participantes do projeto – escultores, pintores e decoradores – são hoje quase todos conhecidos. Nesta postagem, vamos reconhecê-los.

Entendendo o estilo manuelino

Já dissemos que a expressão máxima do estilo manuelino em Portugal é o Mosteiro dos Jerônimos, no bairro lisboeta de Belém. Para melhor entendermos as características do estilo, transcrevemos abaixo, na íntegra, os 10 itens descritos por Araújo Vianna para descrever o “ogival manuelino” – e, por extensão, também o neomanuelino.

Vejamos quais os caracteres essenciais do estilo ogival manuelino:

  1. Predomínio do arco pleno e do arco abatido, terminado nos dois extremos em arcos de círculo.
  2. Tolerância de todos os mais arcos, tendo os de ponto subido um retábulo, de dois centros, pinhas ou maçanetas caídas das interseções ou vértices dos ângulos curvilíneos.
  3. Abóbadas sustentadas em altos pilares polistilos ou enfeixados e com pedestais; sendo o enfeixamento disfarçado não só pela falta de arestas salientes de permeio, como pelas mistas esculturas e meios relevos.
  4. Demasia e extravagancia nas ultimas, compreendendo bustos em medalhões, arabescos, bestiais, brutescos etc.
  5. Ausência de molduras retas ou antes cortes amiudados delas por outras curvas, preferindo nos lavores, meias laranjas, bocetes etc.
  6. Os corpos verticais interceptados por nichos de estatuas ou por baldaquinos torreados e rendados.
  7. As ombreiras das portas, frestas e janelas quase sempre compostas e as bases das colunas cortadas por salientes repetições angulares, de caráter peculiar.
  8. Entre as harmonias de construção não há repetição de monótona igualdade nos capiteis, mísulas e gárgulas, enfim, falta de simetrias bilaterais.
  9. Adoção de preferência às formas oitavadas, assim na ramificação dos artezães (sic) como nas bases octógonas.
  10. Finalmente o uso contínuo para os florões e ornatos de lugares mais notáveis, das divisas do rei fundador do estilo, e o ramo de três flores iguais, com pés e folhas, símbolos da ordem de Avis.

Fachada

Com 22 metros de largura e 26 metros de altura, a fachada em cantaria de lioz foi executada em Lisboa pelo mestre canteiro Germano José de Sales e veio de navio para o Rio de Janeiro. Araújo Vianna informa que as argamassas foram feitas de cal e saibro das Laranjeiras, o granito da alvenaria fornecido pela pedreira de São Diogo – morro hoje desaparecido -, e as alvenarias das abóbadas são de tijolo tubular de Marselha.

Os três corpos do frontispício são limitados por altos pilares oitavados verticais, interrompidos por baldaquinos torreados e rendados, servindo de dossel a estatuas de heróis portugueses. Os dois referidos pilares, colocados nos extremos, terminam por pináculos, e os dois outros do corpo central, que excedem em altura aos laterais, se elevam em forma de agulhas convenientemente ornamentadas, em cujo vértice se acha uma esfera armilar, encimada pela Cruz de Avis (Araújo Vianna, 1887).

A platibanda é de uma rica ornamentação, formada de pequenos ramos, destacados, de três flores. Nos dois corpos laterais, porém, essa platibanda é interrompida, em cada um desses corpos, por pequena coluna, terminada por uma esfera armilar, correspondendo a cada uma dessas colunas; na frisa florida da cornija vê-se um escudo com as quinas portuguesas (Araújo Vianna, 1887).

O pórtico ricamente decorado tem 9 metros de altura e compõe-se de três arcos concêntricos sustentados por colunelos com capitéis diversamente ornamentados.

No segundo pavimento, correspondendo à porta de entrada, há uma grande janela em arco pleno semelhante ao da entrada. Essa janela subdivide-se em duas outras também em arcos plenos sustentados por colunelos.

Os corpos laterais têm no primeiro pavimento uma grande janela ogival subdividida em duas outras de arco pleno que ainda se subdivide em quatro, sendo todos os arcos sustentados por colunelos ornamentados. No intervalo compreendido pelo ponto de contato dos arcos plenos e o grande arco da janela, vê-se, por assim dizer, uma rosácea circular com a cruz de Avis.

No pavimento superior há em cada um deles uma janela de três arcos consecutivos, subdividindo-a em três, das quais a do centro é a maior e as duas outras semelhantes às janelas secundárias do pavimento térreo.

Em toda a fachada, assim como no interior do edifício, as molduras fingem no liós, cordas, velas e cabos, ornatos esses tirados da navegação.

Os quatro medalhões em baixo relevo da fachada – dois no arco da portada e dois no corpo da fachada, no alto – trazem os bustos dos escritores portugueses Alexandre Herculano, Almeida Garrett (arco da portada), Fernão Lopes e Gil Vicente (corpo da fachada). São trabalho do escultor português José Simões de Almeida (1844-1926), pois que neles carregam a inscrição SIMÕES ESCP. 1883. Aqui discordamos, portanto, do mestre Araújo Vianna, que afirma terem sido estes medalhões executados pelo escultor português Pedro Carlos dos Reis.

Simões de Almeida assina também as quatro grandes esculturas em corpo inteiro da fachada. Retratados nestas grandes esculturas – 220 cm, cada – estão Pedro Alvares Cabral[4], Luís de Camões, o Infante Dom Henrique e Vasco da Gama.

Um pouco sobre os elementos do interior

As colunas de ferro fundido que sustentam as passarelas trazem a marca “M. J. Moreira & Cia.”. Em geral o vigamento é de ferro fabricado na Bélgica. A cobertura, também de ferro, é a primeira construída no Rio de Janeiro[5], e foi também executada nas oficinas da fundição acima citada, bem como a escadaria com degraus em mármore, as balaustradas e muitas outras peças de ornamentação.

A Fundição “M. J. Moreira & Cia.” é também responsável pelas grades externas da antiga Escola da Freguesia de Nossa Senhora da Glória, atual Colégio Estadual Amaro Cavalcanti, no Largo do Machado.

O primoroso trabalho de estucador que se nota em todo o prédio é devido ao Sr. Domingos Meira.[6]

A pintura interna foi executada pelo Sr. Frederico Steckel. [7] Araújo Vianna nos conta que “no salão de honra o Sr. Steckel brilhou na pintura dos bronzes, da sanca, guarnição e pingentes, das colunas de malaquita, dos mármores, nos tetos de damasco antigo, não esquecendo a sua original composição de um estampado de cruzes de Avis e S. Tiago que se observa na parede”.

Segundo o INEPAC, é digna ainda de menção, no segundo andar, a Sala dos Brasões, ornada dos escudos de 36 cidades portuguesas e de ultramar.

O lustre e o vitral da claraboia vistos de baixo para cima. Repare nos quatro vértices com ricos trabalhos em estuque e pintura.

Nos vértices do teto sob a claraboia, junto aos excepcionais trabalhos em estuque, estão quatro medalhões pintados sobre painéis verticais elípticos, representando a descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama (1497), a descoberta do Brasil por Pedro Alvares Cabral (1500), a fundação do Gabinete Português de Leitura (1837) e o tricentenário da morte de Camões (1880), Araújo Vianna afirma em seu artigo de 1887 que teriam sido pintados pelo Sr. Augusto Duarte. Não é o que pudemos depreender em fotografias produzidas já em 2010. Os quatro trabalhos vistos atualmente foram executados na década de 1960 pelo pintor coimbrão Joaquim Pinho Dinis (1921-2007), pois assinados PINHO DINIS em pelo menos dois deles. Terão se perdido as pinturas atribuídas a Augusto Duarte?

Um última informação, mais uma vez devida ao mestre Araújo Vianna: nos dois vãos principais do salão há duas portas, desenhadas pelo Sr. Frederico José Branco e executadas em araribá nas oficinas dos Srs. Moreira Carvalho & Companhia.


[1] O então Gabinete Português de Leitura já havia ocupado outras quatro sedes: o número 83 da Rua de São Pedro (desaparecida para a abertura da monumental Avenida Presidente Vargas), da fundação até 1842; num “belo prédio de três pavimentos, de fachada azulejada e beiral de telhas de canal esmaltadas em Alcobaça”, no demolido número 55 da Rua da Quitanda, até 1850; no sobrado de número 12 da Rua dos Beneditinos, até 1871, quando a instituição comprou o prédio do então Hotel São Pedro, na antiga Rua da Lampadosa (rebatizada para Rua Luís de Camões em homenagem ao RGPL); e de 1888, ano de inauguração do novo prédio, aos dias de hoje.

[2] Ernesto da Cunha de Araújo Vianna (1852-1920), engenheiro e historiador carioca.

[3] O INEPAC (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural) é o órgão responsável pela defesa do patrimônio cultural, histórico e artístico do Estado do Rio de Janeiro.

[4] No Rio de Janeiro há pelo menos uma outra estátua de Cabral confeccionada por Simões de Almeida, localizada na Beneficência Portuguesa, na Rua Santo Amaro, na Glória. Nesta consta a inscrição SIMÕES. MOD.

[5] A Wikipedia afirma ter sido esta a primeira estrutura metálica construída não apenas no Rio de Janeiro, mas em todo o Brasil.

[6] Domingos Antonio de Azevedo da Silva Meira (Afife, Portugal, 1840-1928) é o responsável, entre tantas outras, pela decoração em estuque do grande salão e outras dependências do Palácio da Pena, em Sintra, Portugal.

[7] Frederico Antonio Steckel (Dresden, Alemanha, 1834-)

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