Um “regalo” português na Buenos Aires

O carioca que visita a loja Regalo, no Centro, em busca de embalagens para presente, talvez não se dê conta de que está no interior de uma embalagem muito mais rica, um presente para os olhos. Estamos falando do próprio prédio, uma das mais interessantes fachadas ecléticas da cidade. Localizado no número 314 da rua Buenos Aires – antiga do Hospício –, ali foi a sede social, a partir de finais do século XIX, de uma entidade filantrópica portuguesa – a Real Associação Beneficente Condes de Mattosinhos e S. Cosme do Valle.

História

A Associação Beneficente Homenagem ao Conde de São Salvador de Mattosinhos foi fundada no dia 15 de agosto de 1885. No dia 15 de agosto de 1897 a associação inaugurava seu “edifício social em prédio próprio”, à “rua do Hospício n. 314, parte assobradado e parte de sobrado em forma de chalet, com três janelas de peitoril e portas ao lado”, comprado por sessenta contos de réis ao espólio de Manoel Gomes Monteiro Chaves. Ainda não era, como vemos, o edifício atual…

O prédio abrigava ainda outras associações beneficentes, como o Congresso Beneficente Homenagem a Capello e Ivens e o Montepio Homenagem ao Visconde de S. Cosme do Valle, este último fundado no dia 27 de agosto de 1891. A fusão destas associações com a Associação Mattosinhos deu origem à Real Associação Beneficente Condes de Mattosinhos e S. Cosme do Valle.

O prédio atual foi inaugurado no dia 15 de agosto de 1908, aniversário de fundação da associação, conforme noticiou o Correio da Manhã do dia anterior. A associação dava expediente no sobrado, enquanto o térreo continuava sendo utilizado para o comércio (em 1910, vemos anúncios de fábrica de chinelos e comércio de secos e molhados).

A Fachada atual

O térreo está revestido em granito e o sobrado em alvenaria. Neste último, quatro falsas colunas jônicas “suportam” o entablamento e outras quatro emolduram as portas de acesso às sacadas. Sobre a platibanda vemos quatro “compoteiras”, meio pesadonas e destoantes do conjunto.

Analisemos, agora, as referências simbólicas desta fachada.

No coroamento vê-se, centralizada na fachada e ultrapassando os limites do frontão interrompido, de pé sobre uma grande peanha, uma figura feminina de corpo inteiro com as mãos erguidas para o céu. Ela é a Virgem da Assunção, Padroeira da instituição. Ao contrário do que nos ensina a iconografia cristã, ela não tem a seus pés os tradicionais querubins celestiais, mas uma criança, remetendo-nos à sua função alegórica de Adoção, finalidade maior da entidade.

A presença da Virgem em posição de destaque na fachada também se explica, já que o dia de fundação da associação, 15 de agosto, feriado nacional em Portugal, é o Dia da Assunção de Nossa Senhora.

Sob a peanha central há um grande brasão de armas. Um típico escudo português, com seus 7 castelos e 5 escudetes, tem sobre si uma coroa e dois ramos laterais de oliveiras. Nota-se a ausência da esfera armilar portuguesa. Lembremos que Portugal, à época da construção do prédio, ainda era uma monarquia sob a regência de Carlos I, que durou de outubro de 1889 até 1º de fevereiro de 1908, quando foi assassinado.

Uma inscrição na fachada percorre todo o entablamento: REAL A. BENEFICENTE CONDES DE MATTOSINHOS E S. COSME DO VALLE. Logo abaixo desta estão quatro baixos-relevos, simetricamente dispostos, dois de cada lado, nos quais estão representadas as faces de dois homens. Ganha uma bala quem acertar quem são os dois condes ali retratados.

Acertou quem disse Conde de São Salvador de Matosinhos e Conde de São Cosme do Valle!

O retratado à esquerda do observador – de vistosas costeletas – é João José dos Reis (Matosinhos, Portugal, 11/05/1820 – Rio de Janeiro, 25/10/1888), 1º Visconde e 1º Conde de São Salvador de Matosinhos, que por aqui aportou ainda menino, em 1833, e que viria a se destacar na sociedade e na filantropia brasileiras.

Quanto ao retratado da direita, com um farto bigode, trata-se de Bernardino Ferreira da Costa e Sousa, 1.º Visconde e 1º Conde de São Cosme do Vale, nascido em Portugal, na Vila Nova de Famalicão, e falecido no dia 25 de outubro de 1909, na mesma localidade.

Os outros dois baixos-relevos circulares, à esquerda e à direita dos retratados, aludem às distinções com os quais foram agraciados os dois patronos da casa. O baixo-relevo da esquerda traz uma cruz sobre a qual estão, mais uma vez, a face dos dois patronos e a imagem da Nossa Senhora da Assunção. Refere-se às distinções conferidas pela própria associação.

Já no ornamento da direita vemos um medalhão com a face do retratado e a inscrição CRUZEIRO HUMANITÁRIO sobre uma cruz encimada por uma coroa, aludindo às diversas distinções de João José dos Reis, o Conde de S. Salvador de Matosinhos. Destacam-se a comenda da Ordem de Cristo, conferida pelo governo português, e a Cruz Humanitária, conferida pela Sociedade Portuguesa de Beneficência do Rio de Janeiro.

No início desta postagem vemos o conjunto de acesso ao sobrado, que é dos mais admiráveis da cidade. A porta, ricamente entalhada em madeira (seria peroba do campo?), confere sobriedade e distinção à edificação. Uma anteporta em ferro aumenta sua vocação art nouveau, bem como a bandeira da porta e os gradis da sacada. Tanto a fabricação da porta quanto da serralheria me são desconhecidas.

Segundo a historiadora Patrícia Vasconcellos em seu livro Interiores (Ed. Sextante, 2002), a associação ocupou o edifício por cerca de 70 anos, até 1967, quando foi incorporada à Associação Luso-brasileira.

Por hoje é só tudo isso!

4 Comentários

  1. Regina Celia Frias Carvalho · · Responder

    Coisa mais rica é poder receber toda essa cultura por email, obrigada!
    Abraços

    Enviado do meu Samsung Mobile da Claro

    ________________________________

    1. Obrigado, Regina! Divulga, por favor!

  2. alexandre rodrigues alves · · Responder

    Gostei muito da postagem, mas senti falta de uma foto do prédio inteiro, para localizar todos os elementos abordados no conjunto arquitetônico… valeu!

  3. Muito bacana! Muito legal descobrir essa construção. Irei visitá-la. Eu faço pesquisa genealógica e descobri recentemente que o Conde de São Salvador de Mattosinhos é meu hexavô.

    Obrigado pela informação!

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