A ITALIANA QUE PERDEU A CABEÇA!

O prédio em foto recente (setembro de 2020).

Olá, amigos! Na Praça da República há um belo prédio, sobre o qual sempre tive vontade de escrever. Estivesse ele em melhores condições e teria certamente entrado em meu primeiro livro, O RIO QUE O RIO NÃO VÊ, lançado em 2012.

Trata-se da sede da Societá Italiana di Beneficenza e Mutuo Soccorso, que em sua fachada ostenta seu nome em letras garrafais assim mesmo, em italiano.

Angelo Trento, em seu livro “Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil”, informa que “após a “Giovine Italia”, fundada pelos mazzinianos em 1836 com fins políticos, a primeira instituição de que se tem notícia é a “Societá Italiana di Beneficenza” no Rio de Janeiro, surgida em 1854, à qual aderiram imediatamente 126 sócios, ou seja, um número elevadíssimo se considerarmos a pequena consistência da colônia italiana naquela data. Em 1875, fundiu-se com a “Societá di Mutuo Soccorso”, fundada em 1874, mas por 20 anos teve uma existência difícil. Em 1908, com o nome com que era mais conhecida, “La Beneficenza”, contava com 340 inscritos”.

Vemos, portanto, que a sociedade é bem mais antiga que o edifício…

A planta desenhada por Jannuzzi por volta de 1904.

O novo edifício, cuja pedra fundamental foi lançada no dia 20 de setembro de 1904, foi projetado pelo grande empreiteiro do momento, Antonio Jannuzzi, italiano de nascimento e brasileiro por adoção, que por seus feitos pelo país e pela comunidade italiana acabou recebendo o título de Comendador Jannuzzi. (Mais recentemente, em junho de 2012, este notável italiano mereceu um busto que hoje se encontra na esquina da Rua Sete de Setembro com Avenida Rio Branco). A fachada tem a data de 1907 – provável ano de inauguração -, mas as cartelas laterais trazem em romanos as datas de 1854 e 1906.

No dia 1° de outubro de 1907, o sociólogo e escritor italiano Guglielmo Ferrero (1871-1942) deixou as seguintes impressões sobre o novo imóvel: “Acabo de visitar o edifício da Societá Italiana di Beneficenza e Mutuo Soccorso, que deve ser o símbolo material da comunidade italiana. Desejo à sociedade sorte tão bela quanto é belo o edifício”.

O conjunto eclético de linhas classicizantes se apresenta dotado de grande riqueza decorativa em sua fachada. Repare, caro leitor, na foto que abre esta postagem, da construção por inteiro, que há decoração no térreo, no segundo pavimento e nas platibandas, culminando com o belíssimo grupo escultórico do coroamento.

O inventário de bens tombados descritos pelo Guia do Patrimônio Cultural Carioca, de 2014, informa que a porta em ferro fundido está “ricamente trabalhada, com almofada na sua parte inferior, elementos florais e volutas no restante de sua área.” Não é o que pudemos constatar. A menos que a tal porta “ricamente trabalhada” ainda esteja para ser reinstalada, o fato é que a porta que lá está hoje se apresenta dividida em três lâminas de madeira, seis almofadas… e mais nada. Em ferro fundido, mesmo, somente a bandeira da porta permanece… Outro elemento que necessita restauração são as falsas colunas, totalmente pichadas…

No tímpano do frontão triangular sobre a porta principal estão as iniciais SB. A inscrição BENEFICENTIAE NOLITE OBLIVISCI, algo como NÃO SE ESQUEÇA DA BENEFICÊNCIA, se encontra no entablamento desta mesma porta de entrada, um lembrete para aqueles que adentram o recinto.

As demais portas são de enrolar, típicas da arquitetura comercial carioca do século XX.

A fachada se encontra dividida em 5 seções, tanto no primeiro quanto no segundo pavimentos. Todas as portas e sacadas do segundo pavimento estão arrematadas por arcos no interior dos quais estão cartelas e baixos relevos dispostos simetricamente. O arco central constitui exceção, pois nele se encontra o brasão de armas do reino unificado da Itália, que durou de 1861 até 1946, quando a população italiana, via referendo, optou pela República. Uma cruz branca sobre escudo grená encimado por coroa lembrava ao mundo que a Itália era governada pelo Rei Vitor Emanuel III (1869-1947).

Nossa série fotográfica histórica para essa construção se iniciou por volta de 1998. Ao escrever esta postagem, percebemos que a condição do imóvel foi se deteriorando ao longo do tempo, e não poderia ser diferente, tamanha a indiferença pela qual passou nesses últimos 20 anos, pelo menos.

O grupo escultórico do coroamento bem ilustra o total abandono pelo qual passou a construção nesse período. Encontram-se ali, simbolizando a vocação maior da instituição – a Adoção -, duas mulheres que amparam quatro crianças – duas para cada uma. Todos estão vestidos em andrajos, em evidente sinal de pobreza absoluta. A julgar pela acuidade da bem conduzida restauração atual, a mulher vista de pé carrega um saco de alimentos – que eu sempre achei fosse um recém-nascido… -, e está pronta para dar de comer a quem tem fome, como as duas crianças que, com as mãos estendidas, lhe pedem comida. Ela é a própria personificação alegórica da ideia de Adoção. A outra mulher – sentada – representa possivelmente a mãe que, mesmo sem ter o que comer e o que dar de comer aos filhos, nunca os abandona.

Para aqueles que estranharam o título desta postagem, calma! A italiana que perdeu a cabeça já está de volta com a cabeça no lugar. Explico. Pelo menos a partir de 2010 a escultura da mulher de pé já tinha perdido a cabeça, como o demonstra a foto feita no dia 11 de julho desse ano, abaixo. Como a restauração do prédio só chegou agora, em meados de 2020, constatamos que a pobre obra de arte permaneceu “acéfala” por dez anos, coitada.

O grupo escultórico do coroamento, fotografado ao longo de 20 anos, e a cabeça “devolvida” à sua dona.

Não é nosso objetivo fazer aqui uma compilação cronológica perfeita do uso do imóvel ao longo de sua história mais do que centenária, mas abaixo reproduzimos alguns achados contidos na Hemeroteca Digital Brasileira:

  1. A edição 62 do Almanak Laemmert, de 1905, traz o nome de “Alfredo Pavageau, proprietário da Casa União Ciclista, Praça da República, 17”.
  2. No mesmo endereço tinha sua sede a Societá Dante Alighieri.
  3. O Jornal do Commercio de 14 de agosto de 1909 e o volume 10 do Almanaque Brasileiro Garnier de 1912 trazem o número 17 da Praça da República como Juízo dos Feitos da Saúde Pública.
  4. Por volta dos anos 1950 e 1960 a loja abrigou a sede social das Representações Sobrasil S.A., mas o sobrado ainda abrigava a sociedade italiana.

Por hoje é só, amigos! Abaixo, mais duas imagens do imóvel.

7 Comentários

  1. Denise Magalhaes · · Responder

    Seu texto é delicioso…
    Preciso e engraçado.
    Sempre é um prazer ler seus posts!

  2. Belo texto, bem escrito e com muita informacao. Quando eu era crianca, tive duas bicicletas compradas na Casa Pavageau.

  3. Marina Monnerat · · Responder

    Seu texto estimula uma visita ao local. Muito obrigada.

  4. Harry Pazzaglia · · Responder

    Olá. Você saberia me informar onde estão arquivados os documentos dessa sociedade apos a sua extinção? Sou bisneto de um dos membros da diretoria SILVIO PAZZAGLIA e estou atras de informacoes escassas sobre meu bisavô. Desconfio que ele era anarcosindicalista e essas associacoes serviam como propagadoras do movimento

    1. ola Harry,tambem estou nessa,meu bisavo e o trisavo faziam parte,sendo o trisa fundador e parceiro comercial do GRONDONA,todos Mazzinianos a principio…entre em contato para trocar idea..31 999672721”

    2. Paulo Celani · · Responder

      Olá Harry!!
      Meu bisavô, Govanni Celani, foi presidente da SIB em 1882.
      Por favor, me informe se você conseguir informações sobre onde estão os arquivos da sociedade.
      Farei o mesmo caso eu consiga saber.

  5. Paulo Celani · · Responder

    Parabéns pelo artigo!
    Eu também gostaria de saber onde posso encontrar os documentos antigos da Sociedade Italiana de Beneficência. Meu bisavô, GIOVANNI CELANI, foi presidente da sociedade em 1882.
    Obrigado!!

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