O TEMPLO SAGRADO E A CASA PROFANA

Olá, amigos! Estamos hoje no atual Largo de São Francisco de Paula, antiga Lagoa da Pavuna, palco de uma das mais saborosas histórias da crônica carioca, eternizadas pelos cronistas do século XX, como Vivaldo Coaracy e Gastão Cruls. Contam-nos eles que, recebendo o governador Gomes Freire de Andrade a incumbência de naqueles terrenos erigir a Sé Catedral do Rio de Janeiro, ordenou ao requisitadíssimo engenheiro militar José Fernandes Pinto Alpoim – responsável pela execução de 10 entre 10 obras nesse período – drenar a dita lagoa e planificar a área para receber a tão sonhada catedral, em função do lastimável estado em que se encontrava a quinhentista Igreja de São Sebastião do Morro do Castelo e da recusa de outras irmandades cariocas em receber tão indesejável visita.[1] Corria o ano de 1749, e a praça resultante recebeu o pomposo nome de Largo da Sé Nova. As carolas cariocas exultaram de felicidade!

Pois bem, as obras da Sé Nova viraram autêntica obra de igreja,[2] e os trabalhos sofreram tantas paralisações quanto são os santos da Igreja Católica, até serem definitivamente abandonadas com a morte de Gomes Freire, no ano de 1763.


Figura 1. A atmosfera do antigo Largo da Sé Nova é aqui retratada em aquarela do pintor austríaco Thomas Ender. Intitulada “Construção Incompleta do Prédio da Academia de Pintura” e realizada entre 1817 e 1818, a obra retrata a construção inacabada da futura Catedral do Rio de Janeiro, jamais terminada e adaptada para receber a Real Academia Militar a partir de sua criação, em 1810. O título proposto por Ender deixa margem a dúvida: teria o artista se equivocado quanto ao verdadeiro uso da construção ou será que ali teria também funcionado, ainda que provisoriamente, a recém-criada (1816) Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, futura “Academia de Pintura”? Cartas para a redação.

Corta para a chegada do Príncipe Regente, Dom João VI, ao Brasil, no ano de 1808. A Sé já se encontrava, agora, “instalada” na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, aquela mesma que hoje, na Rua Uruguaiana, pede socorro para não cair. Dada a lonjura desse templo para o Paço, resolveu imediatamente o monarca transferir o Cabido para uma igreja que não lhe castigasse tanto as reais juntas. E foi assim que a Igreja do Carmo foi elevada à condição de Catedral do Rio de Janeiro.

Mas nossa estória é outra…

Permaneciam assim sujeitas à intempérie as ruínas da velha Sé Nova. Agora que já se encontravam adiantadas as obras da imponente Igreja de São Francisco de Paula, ali do lado, o antigo Largo da Sé Nova caminhava para se transformar no novo Largo de São Francisco de Paula. Corria o ano de 1810. Foi então que o português Fernando José de Almeida, o Fernandinho – que aqui chegara em 1801 com o título de barbeiro do Vice-rei Dom Fernando José de Portugal e Castro -, pediu a Dom João autorização para deslocar as enormes pedras em cantaria sem serventia da ex-futura Catedral para a construção do teatro que estava erigindo e que, “dando prova de seu amor” ao monarca, seria batizado com seu real nome.

Toda vez que se encontravam, o moço tocava no assunto, mas Dom João não se mostrava muito convencido:

– Sei não, Fernandinho. Pode dar azar. Concentra na peruca.

– Mas Vossa Alteza, não quereis um teatro batizado com o vosso real nome? – replicava o suplicante, entre uma penteada e outra.

E foi assim, após infinita insistência, que Dom João cedeu ao pleito de Fernandinho e deu enfim sua real autorização para a construção do Real Teatro de São João, inaugurado, com seus mais de 1000 assentos, a 12 de outubro de 1813, aniversário de Dom Pedro de Alcântara, filho do monarca e futuro imperador.

Pela graça de Deus e a bondade do rei, estava selado o promissor futuro da casa…


Figura 2. No turbulento 26 de fevereiro de 1821, no então Largo do Rossio – atual Praça Tiradentes – o Príncipe Dom Pedro jura perante a multidão, em nome do pai, a constituição “tal qual fosse redigida pelas Cortes de Lisboa”. O palco era a sacada do Real Theatro São João. Felix Emile Taunay.

Nem tanto. No dia 25 de março de 1824, passados onze anos da inauguração, o Real Teatro de São João estava em festa. O mesmo Dom Pedro, agora Pedro I, Imperador do Brasil, jurava a Constituição em meio a enorme audiência. O drama sacro “Vida de Santo Hermenegildo” foi escolhido para entreter a nobre plateia. Ao final do espetáculo, um incêndio de grandes proporções, iniciado por um dos atores no palco, lambeu toda a estrutura de madeira e em poucos minutos tomou conta da construção inteira.

Do lado de fora, a população não se continha, e num misto de curiosidade e morbidez, acotovelava-se às centenas à frente do teatro em chamas na busca de uma posição privilegiada para assistir àquele dantesco espetáculo, numa cidade de hábitos tão sonolentos e de tão poucos acontecimentos quanto o Rio de Janeiro de então.

A Brazilian Family (detalhe). Henry Chamberlain, 1821. Coleção Brasiliana.

E foi aí que um passarinho ouviu a conversa de duas bem trajadas e oitocentistas velhinhas. Comentando uma com a outra, como se já soubessem do que estava por vir, concordaram, lembrando a finada Sé Nova:

– Viu? Bem feito! É o que dá, roubar pedra sagrada para construir obra profana!


[1] O Cabido da Sé já tentara por várias vezes se estabelecer sob outros tetos, como o da Igreja de São José e o de Santa Cruz dos Militares.

[2] A própria expressão atual “obra de igreja” teria surgido daí.

2 Comentários

  1. Jose Roberto Teixeira Leite · · Responder

    Texto curioso, informativo e original. Nada sei sobre uma sede de uma escola de Belas Artes neste sítio.

  2. ALEXANDRE RODRIGUES ALVES · · Responder

    Muito bom o texto, muito interessante a história… Como sempre!!!

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