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O NÚMERO 116 DA RUA DO OUVIDOR

Olá, amigos! Recentemente escrevi sobre a presença de ornamentação egípcia na cidade. Um dos prédios ali retratados era o de número 116 da Rua do Ouvidor, “canto da Rua dos Ourives”, como se dizia na época, e que hoje nada mais quer dizer do que “esquina da Rua Miguel Couto”, já que a parte que sobrou da Rua dos Ourives após a abertura da Avenida Central recebe hoje o nome do famoso médico brasileiro.[1]

O edifício atual – lotado de informação decorativa na fachada – sempre muito me intrigou, até porque acerca dele consta pouquíssima informação bibliográfica. Ele não está, por exemplo, nem no Guia da Arquitetura Eclética no Rio de Janeiro, da Prefeitura, nem no ótimo e recentíssimo Guia da Arquitetura do Rio de Janeiro, da Editora Bazar do Tempo.

Esta, portanto, não será uma postagem curta nem fácil, já que há muito o que explicar sobre o prédio e suas atividades desde que foi construído, provavelmente ainda em finais do século XIX.

Para corroborar a informação acima, transcrevo aqui a nota do dia 9 de julho de 2011, publicada pelo jornalista Ancelmo Gois em sua coluna do jornal O Globo: “Um belo prédio, no número 116 da Rua do Ouvidor, está de volta à paisagem do Centro do Rio depois de cinco anos fechado. Construído no século XIX, é um dos poucos sobreviventes do período anterior à reforma do prefeito Pereira Passos, que mudou a cara da região central da cidade, com a abertura da Avenida Rio Branco. No prédio restaurado pela empresa DRVS funcionava a loja Ao Rei dos Mágicos, onde foi produzido, em 1877, o primeiro telefone do Brasil.”[2] [3]

As únicas informações concretas que encontrei sobre a construção no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro dão conta de um processo iniciado já no ano de 1912, quando ali funcionava a Joalheria Luiz de Rezende, o mais antigo joalheiro do Brasil. Rezende, nascido em Portugal em 1839 e chegado ao Rio de Janeiro com apenas 13 anos, com seu negócio formou uma das maiores fortunas de seu tempo.

No processo, Luiz de Rezende “vem pedir-vos licença para de accordo com os projectos juntos modificar a fachada do prédio número 116 da Rua Moreira Cezar”.[4] No dia 4 de janeiro de 1913, porém, o processo era arquivado porque “nada fizeram”, segundo informava apenas dois dias antes o funcionário H. Goes.

É preciso voltar um pouquinho no tempo, para ver se explicamos essa estória direito. Não prometo conseguir…

Segundo o Relatório da Comissão Construtora da Avenida Central, publicado n´O Album da Avenida Central, reeditado pela João Fortes Engenharia, à página 209, o proprietário dos números 66 e 67 da Rua dos Ourives era Luiz de Rezende, que teria recebido em permuta um terreno na novíssima Avenida Central. Estes números 66 e 67 da Rua dos Ourives são visíveis na planta-projeto da nova avenida, contida na mesma publicação, como vemos abaixo.

O que causa estranhamento é que, ainda de acordo com a figura acima, o número 67 da rua dos Ourives faz esquina com a rua do Ouvidor, e este prédio, ainda segundo a mesma figura, não estava incluído no traçado das construções a serem derrubadas para a passagem da nova avenida. Ora, este prédio, a meu ver, é o prédio que ora estudamos – o de número 116 da rua do Ouvidor! Teria havido uma mudança de numeração e logradouro em algum momento após a construção da avenida, de Ourives 67 para Ouvidor 116? Digam-me – e me ajudem! – vocês.

Um parêntese nessa novela. No terreno recebido em permuta, na nova avenida, Rezende mandou construir, nos números 106 e 108, um belíssimo prédio eclético de quatro pavimentos, projetado pelo arquiteto Alfredo Bandeira e construído por Paulo Schroeder, visto na foto abaixo, de Marc Ferrez.[5] [6]

Mas voltemos ao nosso prédio, já que um só já basta para complicar, e esqueçamos também, por um momento, toda essa problemática enfadonha de endereços…

Segundo preciosa informação do amigo Sergio Coelho, sobrinho-tetraneto do joalheiro Luiz de Rezende, o projeto de reforma da fachada do prédio, do arquiteto francês Charles Adda (1873-1938), é de 1911, e os trabalhos em serralheria e escultura foram executados pelo também francês Clément Desvernine. Ainda segundo Coelho, sendo o proprietário membro efetivo e atuante da Ordem Rosa-Cruz, originária do Egito, teria mandado ornamentar a loja com símbolos da vida e da mitologia egípcias.

No gradil encontram-se fundidas diversas materializações atribuídas ao deus solar egípcio Rá: corpo de escaravelho, asas do falcão e serpente. Na sacada estão ainda as esculturas em ferro fundido de duas deidades da mitologia egípcia, uma masculina e outra feminina.

Entre o terceiro e o quarto pavimentos o prédio apresenta uma faixa de baixos-relevos que percorre toda a extensão da construção. Estes ornamentos guardam pouca ou nenhuma relação com os motivos egípcios acima descritos, mas eram muito empregados na arquitetura de então, herança dos palácios renascentistas franceses. São elmos, espadas, flechas, lanças, um aríete com cabeça de carneiro, uma tocha e um feixe de varas entrecruzados, tudo emoldurado entre festões (abaixo).

O coroamento estava arrematado por um lanternim vazado, hoje desaparecido, no qual quatro esfinges aladas faziam as vezes de cariátides, como mostra a imagem abaixo, publicada em 1922 na Revista O Malho.

Uma última notícia: a joalheria teria sido vítima, na manhã do dia 5 de dezembro de 1898, do primeiro roubo espetacular do país, jamais solucionado e conhecido como o “Buraco do Rezende” – um evento que vale, por si só, nova pesquisa…

Até a próxima!


[1] Segundo Cruvello Cavalcanti em sua “Nova Numeração dos Prédios da Cidade do Rio de Janeiro”, de 1878, o antigo número 118 da Rua do Ouvidor virou o novo número 116. Era um sobrado e estava em nome de Adelaide Pires de Oliveira e outro.

[2] O jornalista deve ter retirado a informação do consagrado livro “História das Ruas do Rio”, de Brasil Gerson, que ali informa que o proprietário, Antonio Ribeiro Chaves, possuía no número 116 a tal loja “Ao Rei dos Mágicos”.

[3] Na edição 1041 do jornal O Programa-Avisador, de 1887, a loja Ao Rei dos Mágicos anunciava “bichas elétricas de efeito cômico” e “fogos especiais estrangeiros sem cheiro nem fumaça” e já informava seu endereço como Rua do Ouvidor, 116.

[4] Lembremo-nos de que, após a Proclamação da República, uma enxurrada de troca de nomes de ruas tomou conta da cidade, e mesmo a consagrada Rua do Ouvidor foi destituída, por força de um decreto de 1897, vindo homenagear um “herói” da Guerra de Canudos, o Coronel Moreira César. Em 1917 – segundo nos informa o arquiteto e historiador Nireu Cavalcanti -, outro decreto devolveu-lhe o nome que recebera já em meados do século XVIII.

[5] Os nomes dos profissionais responsáveis pelo projeto constam d´O Album da Avenida Central, publicado por volta de 1907 pelo fotógrafo Marc Ferrez (1843-1923). No térreo deste prédio funcionou, como consta de fotografia dessa mesma publicação, a famosa Confeitaria Castellões.

[6] Atualmente o espaço está ocupado pelo Edifício Martinelli, cujo endereço é Avenida Rio Branco, 108.

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