O RIO DE TODOS OS SANTOS: O BRASÃO DE ARMAS DE SÃO FRANCISCO DA PENITÊNCIA

Em primeiro lugar, um Feliz 2016 para todos!

Como esses dias de intenso calor carioca não nos tem permitido encontrar pessoalmente, publico aqui parte da informação que pretendia passar na última visita guiada, infelizmente adiada. Trata-se do brasão de armas da antiga Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência[1] que, presente não só nas fachadas da hoje badalada Praça Mauá[2], decora igualmente alguns prédios ecléticos na Rua da Carioca.

Algumas ordens terceiras[3] começaram a se instalar no Brasil a partir de fins do Século XVI. No Rio de Janeiro, a VOT[4] de São Francisco da Penitência data de 1619, fundada por Luiz Figueiredo e sua esposa Antonia Carneiro.[5] É o brasão de armas dessa Ordem que pretendemos estudar aqui.

Perdoa, caro leitor, se complico mais do que explico, mas abro aqui um parêntese. A Rua da Carioca é um dos melhores logradouros da cidade para diferenciar os sobrados neoclássicos dos ecléticos. Como a rua foi alargada no Governo Pereira Passos (1903-1906), tendo sido todo o lado par original derrubado, restou que desse lado existem hoje apenas os sobrados desse período, de composição mais exuberante, e portanto ditos ecléticos. Do lado impar – do número 5 ao número 37, todos construídos pela VOT em 1887 (foto abaixo) – estão as fachadas mais contidas e ordenadas, classificadas como neoclássicas.[6] Fecho o parêntese.

Os sobrados neoclássicos do lado ímpar da Rua da Carioca.

Os sobrados neoclássicos do lado ímpar da Rua da Carioca.

Rua da Carioca, 47, Centro – atual Cataroca Bar.

Passemos então de uma vez por todas ao simbolismo contido no ornamento – o brasão de armas da VOT. Utilizaremos como exemplo o ornamento da foto acima, que repousa no alto da fachada do belo sobrado eclético (número 47) da antiga Rua do Piolho, hoje da Carioca. Vejamos o que ele carrega: dois braços (um desnudo e um vestido) centralizam uma cruz envolta por uma coroa de espinhos, abaixo dos quais um escudo traz dispostos regularmente cinco curiosos símbolos.

O que representarão? Pois bem, vamos lá! O braço desnudo visto à esquerda da foto pertence a Jesus Cristo e o braço vestido, à direita na imagem, pertence a São Francisco de Assis, que segundo a tradição cristã teria recebido os cinco estigmas (ou impressão das chagas) do Cristo no Monte Alverne em 1224. O ornamento original devia possuir pequenos orifícios representando as chagas nas mãos dos dois mártires, mas sucessivas restaurações trataram de eliminá-los, infelizmente. Entre os braços estão dois símbolos da Paixão do Cristo, a cruz e a coroa de espinhos. E no escudo estão representadas, como a sangrar, as cinco chagas compartilhadas pelo Cristo e pelo santo.

Podemos encontrar esse brasão, com ligeiras variações estilísticas, na mesma Rua da Carioca, bem como na Rua Uruguaiana e outras, indicando a propriedade da ordem franciscana – ou a devoção a ela por parte do proprietário original. Abaixo estão alguns deles, infelizmente nem sempre no mesmo estado de conservação que o nosso exemplo:

 

 

Rua da Carioca, 14, atual Casa Pedro.

Rua da Carioca, 14, atual Casa Pedro.

Rua da Carioca, 43

Rua Ramalho Ortigão, 6

Rua Ramalho Ortigão, 14

Rua Ramalho Ortigão, 14

Rua Uruguaiana, 11

Rua Uruguaiana, 11

[1] Hoje OFS, de Ordem Franciscana Secular.

[2] Prainha era a antiga denominação da região da atual Praça Mauá, cujas terras também pertenciam à VOT, e portanto o nome São Francisco da Prainha, na atual Praça Mauá, deriva do nome São Francisco da Penitência, denominação ainda da igreja construída pela ordem no atual Largo da Carioca.

[3] A Wikipedia define as ordens terceiras como associações de leigos católicos, vinculadas às tradicionais ordens religiosas medievais, que se reúnem em torno à devoção de seu santo padroeiro. O termo derivou dos termos “ordem primeira” (dos frades professos) e “ordem segunda” (das freiras professas). (https://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_terceira)

[4] Abreviatura de Venerável Ordem Terceira.

[5] http://redememoria.bn.br/2012/01/igreja-da-ordem-terceira-de-sao-francisco-da-penitencia/

[6] Transcrevo aqui o que considero a mais didática definição sobre a diferença entre o Neoclassicismo e o Ecletismo, do Professor Gustavo Rocha-Peixoto, no excelente Guia da Arquitetura Eclética no Rio de Janeiro, editado pela Prefeitura do Rio: “A vertente acadêmica compreendeu dois subsistemas: o neoclassicismo e o ecletismo. Uma diferença entre eles reside na escolha da referência histórica a imitar. O neoclassicismo formou seu repertório a partir da chamada arquitetura clássica, quer dizer, de um certo recorte da arquitetura da Antiguidade greco-romana. Já a atitude eclética corresponde à acomodação de várias referências no tempo. Variando ou mesmo mesclando “tempos” históricos diferentes, procurava-se produzir uma arquitetura “fora do tempo”. Entretanto há mais diferenças entre neoclassicismo e ecletismo que o estilo: a arquitetura neoclássica é expressão de ordem, disciplina, contenção, equilíbrio, razão, nobreza. À eclética corresponde dramaticidade, conforto, expressividade, luxo, emoção, exuberância”. (Rocha Peixoto, Gustavo, in Guia da Arquitetura Eclética no Rio de Janeiro).

 

 

 

5 Comentários

  1. Esse notável difusor cultural, o Teixeira Leite, com seu conhecimento histórico e amor ao Rio, vem nos agraciando com os segredos escondidos em nossa arquitetura e monumentos históricos. Um trabalho tenaz. Pois as forças contrárias fazem obra de destruição. Inúmeros monumentos derrubados pela Prefeitura repousam se deteriorando no depósito da praça Onze. Parece que têm especial predileção para eliminar a memória do segundo imperio, retirando de circulação qualquer efígie ou eça da nobreza brasileira. Basta dar uma olhada nos depósitos. O BRT , botou abaixo o monumento ao Barão da Taquara que ficava na Praça Seca. Trata-se do homem que urbanizou o imenso bairro da Jacarepaguá. Sua esposa , a baronesa, inaugurou a estátua do marido em 1936, conforme mostram as fotos. O monumento à Juventude que ficava em frente do Maracanã, foi retirado e apodrece também nos depósitos. Justificativa: a prefeitura não tem dinheiro para pagar as restaurações… mas tem dinheiro para pagar altíssimos cachets para os cantores do reveillon em Copacabana.

  2. Monica De Lorenzo Tonndorf · · Responder

    Quando podemos fazer uma visita juntos?

    1. Prezada Monica, boa noite! Prometo te avisar tão logo marcar a visita, ok? Um abraço e ótimo 2016 para ti!

  3. MARILEY MAIA · · Responder

    Excelente artigo.

  4. […] incluir até trabalho figurino, já que tinha duas mãos com dedos como se estivessem em movimento, o símbolo de uma antiga ordem católica – sabia que precisava de duas semanas só para refazer aquele ornamento, usando as técnicas […]

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